terça-feira, 24 de julho de 2007

o fazedor de frases



Na enchente de 22, no Pantanal de
Corumbá, canoeiro Apariço, de
estante e prol, vagou sobre as águas
7 dias e 7 noites, sem comer - e
teve um delírio frásico. Esse aí.











Ontem choveu no futuro.

Sou passado obscuro dessas águas?

Maior que o infinito é o incolor.

Agora eu como água de merenda.

Pra saber dos passarinhos só preciso das minhas ignorâncias.

Sou muito floreado por palavras,

Quem seja floreado por palavras seja o vazio delas,

Eu sou o meu vazio cheio de palavras.

Do meu destino eu mesmo desidero.

Eu sei das iluminações do ovo!

Sou muito comum com pedras.

Falta só que uma árvore me fornde, E os rios tomem banho no meu corpo.

Meu olho tem argumentos.

Fui urinado pela sovelhas do Senhor?

Uma arara invadiu meus exâmetros.

Eu exerço uma grande irresponsabilidade sobre esses pássaros.

Os morros se andorinham longemente...

Eu sou o horizonte dessas garças...

Eu me horizonto.
[Manoel de Barros, poema e desenhos]

sexta-feira, 20 de julho de 2007

Procura-se um Amigo


Não precisa ser homem, basta ser humano, basta ter sentimento, basta ter coração. Precisa saber falar e calar, sobretudo saber ouvir. Tem que gostar de poesia, de madrugada, de pássaro, de sol, da lua, do canto dos ventos e das canções da brisa. Deve ter amor, um grande amor por alguém, ou então sentir falta de não ter esse amor. Deve amar o próximo e respeitar a dor que os passantes levam consigo. Deve guardar segredo sem se sacrificar.

Não é preciso que seja de primeira mão, nem é imprescindível que seja de segunda mão. Pode já ter sido enganado, pois todos os amigos são enganados. Não é preciso que seja puro, nem que seja de todo impuro, mas não deve ser vulgar. Deve ter um ideal e medo de perdê-lo e, no caso de assim não ser, deve sentir o grande vácuo que isso deixa. Tem que ter ressonâncias humanas, seu principal objetivo deve ser o de amigo. Deve sentir pena das pessoas tristes e compreender o imenso vazio dos solitários. Deve gostar de crianças e lastimar as que não puderam nascer.

Procura-se um amigo para gostar dos mesmos gostos, que se comova, quando chamado de amigo. Que saiba conversar de coisas simples, de orvalhos, de grande chuvas e das recordações de infância. Precisa-se de um amigo para não se enlouquecer, para contar o que se viu de belo e triste durante o dia, dos anseios e das realizações, dos sonhos e da realidade. Deve gostar de ruas desertas, de poças de água e de caminhos molhados, de beira de estrada, de mato depois da chuva, de se deitar no capim.

Precisa-se de um amigo que diga que vale a pena viver, não porque a vida é bela, mas porque já se tem um amigo. Precisa-se de um amigo para se parar de chorar. Para não se viver debruçado no passado em busca de memórias perdidas. Que nos bata nos ombros sorrindo ou chorando, mas que nos chame de amigo, para ter-se a consciência de que ainda se vive.

[Vinícius de Moraes]


Feliz Dia do Amigo para todos!
Obrigada por fazerem parte da minha vida de alguma forma!

quarta-feira, 18 de julho de 2007

Quase

Ainda pior que a convicção do não,
É a incerteza do talvez,
É a desilusão de um quase!

É o quase que me incomoda,
Que me entristece,
Que me mata trazendo tudo que poderia ter sido e não foi.

Quem quase ganhou ainda joga,
Quem quase passou ainda estuda,
Quem quase amou não amou.

Basta pensar nas oportunidades que escaparam pelos dedos,
Nas chances que se perdem por medo,
Nas idéias que nunca sairão do papel por essa maldita mania de viver no outono.

Pergunto-me, às vezes, o que nos leva a escolher uma vida morna.
A resposta eu sei de cor.

Está estampada na distância e na frieza dos sorrisos,
Na frouxidão dos abraços,
Na indiferença dos "bom dia", quase que sussurrados.

Sobra covardia e falta coragem até para ser feliz.

A paixão queima,
O amor enlouquece,
O desejo trai.

Talvez esses fossem bons motivos para decidir entre a alegria e a dor.
Mas não são.

Se a virtude estivesse mesmo no meio-termo,
O mar não teria ondas,
Os dias seriam nublados e o arco-íris em tons de cinza.

O nada não ilumina,
Não inspira,
Não aflige nem acalma,
Apenas amplia o vazio que cada um traz dentro de si.

Preferir a derrota prévia à dúvida da vitória é desperdiçar a oportunidade de merecer.

Para os erros há perdão,
Para os fracassos, chance,
Para os amores impossíveis, tempo.

De nada adianta cercar um coração vazio ou economizar alma.
Um romance cujo fim é instantâneo ou indolor não é romance.

Não deixe que a saudade sufoque,
que a rotina acomode,
que o medo impeça de tentar.

Desconfie do destino e acredite em você.
Gaste mais horas realizando que sonhando...
Fazendo que planejando...
Vivendo que esperando...

Porque, embora quem quase morre esteja vivo,
Quem quase vive já morreu.

[Luís Fernando Veríssimo]

segunda-feira, 16 de julho de 2007

Há pessoas que pesam no mundo feito pesadas rochas, impondo sua forma à água das ondas; sua textura ao acariciar do vento. São sólidas, e suas particularidades abrigam insetos; também secam lágrimas que, em poucos dias, ao bater do sol, se transformam em cristais salinos e cheios de luz.Já conheci muitas dessas pessoas, que, como rochas, encontram-se fixadas em algum contexto do mundo, tendo ao redor constante paisagem - com lenta e suave variação de nuvens - e dando pouso seguro às pessoas aéreas como as borboletas.Eu, longe de ser rocha intransigente, sou anêmona, seguindo o fluxo de acontecimentos encadeados entre o céu e o mar. Não me fixo, não porque não quero, mas porque sou sempre arrastada, mesmo contra o atrito nostálgico que me prende a uma confortável concha ou a um afiado coral. Não imponho formas nem textura a ninguém; nem às ondas, nem aos corais, menos ainda às borboletas. Sou esponja, o que toca em mim, absorvo; o que bate em mim, me distorce.E nessa absorbância intensa, mecanismo dinâmico de adaptação, eu provo do mundo. Suas multirealidades misturam-se em mim, meus múltiplos poros recolhem detalhes e impressões. No fim, vivendo na minha insignificância escondida de fundo do mar, não sendo nem forte nem bela, percebo mais do universo do que as imutáveis rochas ou que as aéreas borboletas.

[Clarisse Ricci]

quarta-feira, 11 de julho de 2007

Ausência

'Por muito tempo achei que a ausência é falta.E lastimava, ignorante, a falta.Hoje não a lastimo.Não há falta na ausência.A ausência é um estar em mim.E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,que rio e danço e invento exclamações alegres,porque a ausência, essa ausência assimilada,ninguém a rouba mais de mim.'

[Carlos Drummond de Andrade]

domingo, 8 de julho de 2007

“Beijar o gato entre as orelhas é uma forma de solidão. Lavar a louça às três da manhã, apreciar muito a própria letra, ouvir a brasa comer o papel do fumo no silêncio também. Acreditar nas estrelas que passam com mais pressa. Deitar sozinho. Às vezes deitar acompanhado também. Ter um casaco de lã cinza-escuro que não lava há dois invernos. Acompanhar um seriado(americano). Achar-se inadequado e esquecido ou achar-se bom demais pros outros. Possuir nesse vasto mundo apenas um cabideiro. Beber destilado em copo plástico, esquecer o aniversário da amiga. Ver televisão com fantasma, ouvir rádio desligado da tomada. Conversar em fila, falar alemão, detestar turista, abrir mão de. Viciar em remédio pro nariz, ganhar na loto, guardar papel de presente, saber cerzir, não ser fascinado pela tecnologia, amar gadgets que não sabe usar. Não amar ninguém. Telefonar a cobrar de um orelhão na chuva pra outra cidade, chamar o garçom pelo nome e ser chamado pelo nome por ele. Concordar que o rock morreu. Escrever sem expectativa, confiar no conselho da manicure, escrever cartas, não enviar cartas. Às vezes mesmo enviá-las é uma forma de solidão. Sentar na segunda fila no cinema, botar bebedouro pra passarinho na janela. Dormir com a caneta na mão.”

Trecho do conto “Inseto”, em Dentro de um Livro.

terça-feira, 3 de julho de 2007

Ou se tem chuva ou não se tem sol, ou se tem sol ou não se tem chuva

Ou de calça a luva e não se põe o anel, ou se põe o anel e não se calça a luva

Quem sobe nos ares não fica no chão, quem fica no chão não sobe nos ares

É uma grande pena que não se possa estar ao mesmo tempo em dois lugares!

Ou guardo dinheiro e não compro doce, ou compro doce e não guardo dinheiro

Ou isto ou aquilo: ou isto ou aquilo... e vivo escolhendo o dia inteiro!

Não sei se brinco, não sei se estudo, se saio correndo ou fico tranquilo.

Mas não consegui entender ainda qual é melhor: se isto ou aquilo.

[Cecília Meireles]

"Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas
que esperam ser escritos.

Estão paralisados, mas não há desesperohá
calma e frescura ma
superfície intata

Ei-los sós e mudos, em
estado de dicionário."

[Carlos Drummond de Andrade - A Procura da Poesia]


, por que se preocupar com quem inventa ou deixa de inventar as palavras - ou poemas - se elas já estão todas inventadas, só a espera de serem colhidas?


Calo-me. Porque não sei qual é o meu segredo.
Conta-me o teu, ensina-me sobre o secreto de cada um de nós.
Não é segredo difamante. É apenas esse isto: segredo. E não tem fórmulas.
[Clarice Lispector - Água Viva]